Há 121 anos o Brasil abolia a escravatura, sem, contudo, que ela deixasse de existir. A escravidão contemporânea existe e se apresenta de maneira mais sutil, sobretudo na pecuária, agricultura e minas de carvão. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima em 25 mil os brasileiros em condições análogas à escravidão no país.
Os dados reais, no entanto, indicam que essa projeção pode estar subestimada. Só nos últimos 14 anos, o Grupo Móvel de Fiscalização do Ministério do Trabalho resgatou 33.253 pessoas que estavam privadas da liberdade e submetidas a serviços forçados. Os 23.677 autos de infração resultaram em R$ 48 milhões em multas.
No caso brasileiro, o trabalho escravo tem sido encontrado principalmente na pecuária (80%) e na agricultura (17%). De acordo com a OIT, nas áreas rurais as pessoas são submetidas a condições degradantes de trabalho, impossibilitadas de sair da propriedade devido ao isolamento geográfico, a dívidas fraudulentas e ao controle de guardas armados.
Em geral, são impedidos de sair por meio da coerção física até pagarem suas dívidas forçadas quando o patrão cobra indevidamente por comida e alojamento. No ano passado, Goiás liderou o ranking nacional, com 867 trabalhadores resgatados. O Paraná foi o décimo entre os 22 estados onde houve fiscalizações em fazendas suspeitas de manter trabalho escravo.
Pela estimativa da OIT, a maioria das 25 mil pessoas mantidas sob condições análogas à escravidão no Brasil está sobretudo nos estados do Pará e Mato Grosso, e muitas vezes a prática está ligada à degradação do meio ambiente. No capítulo dedicado ao país em seu relatório global, a organização compara a floresta amazônica a um ímã capaz de atrair mão-de-obra escrava.
Para a OIT, a pouca oferta de emprego, as condições de isolamento geográfico e a ausência do estado e de instituições de proteção fizeram desta região um solo fértil para o tráfico e a exploração de trabalhadores. Seja na Amazônia ou em qualquer outra parte do país, o aliciamento se dá com falsas promessas.
Recrutados para trabalhar numa plantação, pequenos agricultores são enredados nas artimanhas do patrão. Recebem um adiantamento em dinheiro e concordam em pagar a dívida trabalhando. O logro começa quando se veem obrigados a comprar comida e outros bens no armazém da fazenda, com preços inflacionados. Isolados, sem ter a quem recorrer, endividam-se cada vez mais, e começa a escravidão por dívida. Esse tipo de trabalho forçado se alimenta da pobreza e do desconhecimento das vítimas, que perpetuam a prática.
Segundo a OIT, outro tipo de trabalho forçado em expansão está relacionado ao tráfico de pessoas. Ele ocorre quando um jovem é seduzido pela oferta de trabalho num restaurante, clube noturno ou casa de família em outra cidade ou país. Concorda em viajar clandestinamente, pagando caro pela viagem e com o compromisso de pagar a dívida com o trabalho futuro. Mas ao chegar, o recrutador toma o passaporte e o dinheiro e o submetem a um subemprego ou no mercado da prostituição. Esse tipo de exploração envolve também crianças e adolescentes.
Patrões não vão para a cadeia, diz OIT
Apesar de todos os programas adotados pelo governo brasileiro, o país ainda não consegue colocar quase ninguém na cadeia por submeter trabalhadores a um regime de escravidão. A crítica é da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que, em um levantamento divulgado ontem, estima que a escravidão "rouba" US$ 20 bilhões de trabalhadores no mundo por ano em salários e pagamentos.
Na América Latina, o salário "roubado" é de US$ 3,6 bilhões. Até hoje, apenas uma pessoa no Brasil foi para a cadeia por crimes relacionados à escravidão. A OIT admite que o país vem adotando multas altas para punir os empresários, mas alerta que isso ainda não é suficiente. "Se o Brasil quiser lidar com esse problema, precisa ir além de uma resposta por meio da Justiça Trabalhista. O que deve ocorrer é que a Justiça criminal precisa ser acionada para dar uma resposta", afirmou Roger Plant, diretor do Departamento de Combate ao Trabalho Escravo na OIT.
Crise e escravidão
No total, a estimativa é de que 12,3 milhões de pessoas são vítimas do trabalho escravo no mundo. A Ásia é a primeira, com 9,4 milhões de vítimas. A América Latina vem em segundo lugar, com 1,3 milhão. 200 mil deles seriam vitimas de tráfico de seres humanos.
O alerta da OIT é de que, diante da crise econômica, há uma preocupação de que esse número possa aumentar. "Infelizmente, o número de vítimas aumenta, não diminui", afirmou Plant.
A OIT destaca que o Brasil vem fazendo esforços para lidar com o problema, liberando milhares de pessoas e promovendo campanhas. O principal mecanismo de combate ao problema tem sido a imposição de multas e a obrigação de que empresários e fazendeiros paguem os salários aos trabalhadores. Algumas das multas somam milhões de dólares.
Mas a OIT quer mais. A entidade aponta que, em 2006, centenas de operações do Ministério do Trabalho liberaram 3,2 mil pessoas. Em 2007, foram 6 mil pessoas liberadas, contra 2,2 mil nos seis primeiros meses de 2008. Desde 1995, mais de 30 mil trabalhadores já foram retirados da situação de escravidão no Brasil.
A ONU enviará em junho uma missão para investigar a questão do trabalho escravo no Brasil e o setor do etanol estará no centro da atenção da entidade.
A grande senzala
Os escravos brasileiros são parte da grande senzala global. São 12,3 milhões as vítimas do trabalho forçado no mundo, segundo a OIT. Não se trata de uma chaga exclusiva do Terceiro Mundo, e nos países ricos eles são mais rentáveis. Enquanto na Ásia e Pacífico os rendimentos com a atividade forçada de 9,5 milhões de pessoas chegam US$ 9,7 bilhões, os 360 mil escravos da Europa e dos Estados Unidos rendem US$ 15,5 bilhões aos exploradores.
Na América Latina e Caribe são 1,3 milhão de pessoas submetidas à escravidão, com rendimentos de US$ 1,3 bilhão. Mulheres e meninas respondem por 56% da mão-de-obra forçada. Elas também são maioria (98%) na exploração sexual comercial.
Fonte: Gazeta do Povo