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Diagnosticando e combatendo o adoecimento generalizado na categoria bancária

Confira o texto da médica e pesquisadora Maria Maeno, baseado na palestra de abertura da 1ª Conferência Intersetorial sobre Saúde e Trabalho Bancário

Texto baseado na palestra de abertura da 1ª Conferência Intersetorial sobre Saúde e Trabalho Bancário: combatendo o adoecimento generalizado na categoria bancária

13/04/2023, Porto Alegre

Maria Maeno
Médica, pesquisadora da Fundacentro – Ministério do Trabalho e Emprego
Membro do GTST do Instituto Walter Leser da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e do Núcleo Semente – Saúde Mental e Direitos Humanos Relacionados ao Trabalho do Instituto Sedes Sapientiae

Saudações a todas as pessoas presentes!

Saúde é determinada socialmente. O que significa isso?

Parto da premissa de que a saúde é determinada socialmente. E isso quer dizer que o que herdamos da genética dos nossos pais e avós interage com o meio no qual fomos concebidos e nascemos.

Sendo o útero de nossas mães o primeiro abrigo no qual nos desenvolvemos, tudo que nossas mães nos ofereceram ou não puderam oferecer faz diferença na nossa saúde, não só a curto prazo, mas muitas vezes por toda a vida.

A infância que tivemos configura nossa saúde e nosso jeito de ser, se nossas mães tiveram condições de nos amamentar no peito exclusivamente durante 6 meses e não tiveram que nos empurrar a mamadeira precocemente, se tiveram condições de nos estimular e nos acarinhar desde sempre e não tiveram que nos deixar com alguém para ganhar a vida desde os nossos primeiros dias de vida, se pudemos ir à escola e conviver com crianças da mesma idade e não nos deixaram assistindo à TV o dia todo para que nos acalmássemos enquanto os adultos da casa se ocupavam nos afazeres dentro ou fora de casa. Se pudemos comer comida de boa qualidade e não produtos industrializados e pouco nutritivos.

Talvez nem todos se deem conta de quão afortunados e afortunadas somos, pois nossos filhos provavelmente conheceram os primeiros olhares de reprovação já grandinhos e com capacidade de compreender porque estavam tendo uma desaprovação, enquanto milhões de crianças conhecem precocemente olhares de compaixão, indiferença ou pior, de medo, ao estarem nas ruas em busca de comida ou nos semáforos vendendo doces, particularmente se forem negros.

Estou falando de crianças, que, dependendo de nossa luta, poderão ou não optar pelo gênero com o qual se identificarem se nossa sociedade permitir e não só tolerar, mas considerar isso uma não questão.

Estou falando de crianças e depois adultos, que serão estimulados ou não, a se levantarem quando caírem, física ou emocionalmente.

Estou falando de crianças e depois adultos, que poderão estudar em escolas seguras, onde sejam estimuladas a questionar, a opinar, a falar. Ou não. E neste caso, não terão acesso a escolas ou irão a escolas onde se celebra a obediência acrítica e se abafa o questionamento, onde os professores são mal pagos, desestimulados, onde a violência física ou psicológica permeia as relações.

Estou falando de crianças em um país cuja Constituição Federal, de 1988, dá proteção especial à maternidade e à infância, às famílias, mas cuja sociedade permite que haja trabalho infantil e trabalho escravo de crianças, pais e mães. “Descobertas” de trabalho escravo causam espanto e indignação por alguns dias, quando destacadas pela mídia, mas logo são esquecidas. Aos resgatados do trabalho escravo tampouco têm sido oferecidas opções de trabalho digno, seguro e saudável.

Estou falando de alguns aspectos do artigo 6º da Constituição Federal – direitos sociais: a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados

E por que estou falando destas questões neste evento?

Porque não se deve começar a falar de saúde falando de serviços de saúde, de planos de saúde e sim, do que determina a saúde e o adoecimento, isto é, a sociedade em que vivemos, pois a saúde é fruto das condições sociais e econômicas da população. Essa é a compreensão de saúde com a qual me identifico e é expressa no artigo 196 da Constituição Federal, graças ao grande movimento da Reforma Sanitária brasileira e aos deputados constituintes. Diz o artigo 196 que a “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”

Então, uma primeira questão é:

– Não teremos saúde para todos e todas, enquanto não tivermos uma sociedade em que os valores máximos sejam da democracia e os direitos da coletividade sejam o objetivo central e estejam acima de tudo. Portanto, não cabe qualquer suposto direito individual de falar e organizar grupos que ajam contra o regime democrático.

– Não teremos saúde para todos e todas enquanto não tivermos de fato a coibição de quaisquer manifestações de discriminação contra pessoas em situação de rua, contra idosos, contra quaisquer etnias e cor, contra quaisquer opções de gênero, contra quaisquer opções religiosas.

– Não teremos saúde para todos e para todas enquanto não conseguirmos como povo ter solidariedade e empatia de verdade.

– Não teremos saúde para todos e para todas se continuarmos a ser divididos em castas e a saúde não seja considerado um direito humano, essencial no mundo real.

As desigualdades sociais e econômicas entre nós, de todas as ordens, têm que ser motivo de vergonha nacional e não de ostentação. O que faz uma pessoa que se mostra nas redes sociais mostrando a marca do vinho que bebe ou comendo um caviar, como se fosse um mérito seu, enquanto milhões de pessoas que estão na mesma rede social estão passando fome ou necessidades básicas?

Até agora, espero ter dado exemplos de situações crônicas de desigualdades sociais que interferem na nossa saúde.

A Constituição Federal ampara a compreensão da determinação social da saúde.

Aí gostaria de falar da segunda questão, referente ao artigo 196 da Constituição Federal. O das políticas sociais e econômicas que devem visar à redução do risco de doenças. Quase todos os cenários que temos presenciado desobedecem o artigo 196 da nossa Constituição, pois as políticas econômicas, no atacado, costumam privilegiar os ricos e prejudicar os pobres e as pessoas que trabalham, aumentando o abismo que existe historicamente entre esses segmentos sociais.

Os determinantes econômicos e sociais da saúde dos quais a Reforma Sanitária fala com propriedade são aqueles que determinam o nosso modo de viver e consequentemente a nossa saúde, o nosso modo de adoecer e de morrer e o trabalho é central na vida de todas as pessoas e de todas as famílias.

Os trabalhadores e trabalhadoras do campo se expõem em maior ou menor grau a agrotóxicos, assim como os consumidores, resultado de opções feitas pelos governos. Sabe-se que nos últimos anos, o governo passado liberou 1.629 agrotóxicos em 1.158 dias de governo, portanto, 1,4 por dia. São contaminantes do nosso ar, das nossas águas, são substâncias que nos fazem adoecer por doenças crônicas, especialmente os cânceres que poderiam não existir na profusão que existem. Isso apenas para falar da alimentação, objeto de uma sólida política intersetorial de segurança alimentar e nutricional, construída nos governos Lula e Dilma e agora em reconstrução neste governo.

Quando as estatísticas mostram que a violência urbana no país mata mais jovens, negros, de periferia, estamos falando de determinantes sociais e econômicos, que incluem a violência que atinge as populações seletivamente. Estamos falando da população pobre, que mora onde a lei não chega em sua plenitude e o racismo estrutural impera.

Quando falamos de maior número de óbitos no trabalho entre os homens e particularmente de homens negros, falamos também de determinantes sociais e econômicos, de inserção em determinados postos de trabalho, de circulação em horários e locais mais perigosos, do racismo estrutural da sociedade.

Outros exemplos não faltam. Os estudos sobre os desastres envolvendo rompimentos de barragens mostram que eles poderiam ter sido evitados se as decisões das empresas, com a anuência do governo, tivessem sido outras ao longo dos anos. Essas catástrofes, que devastaram nosso meio ambiente, mudaram as vidas das famílias que por lá viviam e mudaram as vidas das pessoas que lá perderam seus entes queridos poderiam ter sido evitados se não tivessem resolvido arriscar já contando com o caixa para pagar indenizações de perdas e danos, que ao nosso ver não são indenizáveis.

Adoecimentos relacionados ao trabalho.

Quanto aos bancários, e inicialmente, as bancárias, um dos adoecimentos relacionados ao trabalho mais emblemáticos, considerado um adoecimento feminino por muitos à época, foram aqueles relacionados ao desgaste do sistema musculoesquelético e que tiveram grande visibilidade social nas décadas de 1990 e 2000 no Brasil, as LER/Dort.

Milhares de bancários e bancárias explodiram em dor nos MMSS e coluna, junto com trabalhadores de empresas de outros vários ramos econômicos, entre as quais grandes empresas multinacionais, quebrando o paradigma de que essas ofereciam condições de trabalho saudáveis.

Durante minha vida profissional atendi milhares de trabalhadores e trabalhadoras, vítimas de acidentes e doenças relacionadas ao trabalho. Realizei incontáveis ações de vigilância e fiscalização nos 19 anos que trabalhei no SUS, especificamente no Programa de Saúde dos Trabalhadores da Zona Norte de São Paulo e depois no CEREST/SP.

Naquela época, a prevalência de LER/Dort era muito maior em mulheres do que em homens, e assim, milhares delas eram discriminadas até na própria família e se culpabilizavam por não conseguirem mais desenvolver os afazeres domésticos, culturalmente imputados às mulheres: lavar roupas, lavar louça, cozinhar, cuidar dos filhos etc e algumas também não conseguiam mais cuidar de sua própria higiene, como se lavar e se pentear.

Textos escritos por profissionais ligados às empresas falavam do pouco preparo físico e da fraqueza das mulheres como razão da ocorrência das tendinites, tenossinovites e outras ites. Outros falavam dos afazeres domésticos como causas do adoecimento. E outros ainda falavam do perfil psicológico delas ou da histeria em massa. Tudo para culpabilizar a trabalhadora pelo seu adoecimento que era por causa das condições de trabalho.

Mas ao se observar e estudar as atividades de trabalho por elas desenvolvidas, rapidamente se constatou que eram atividades repetitivas, que requeriam grande destreza dos membros superiores, dedos, correndo atrás das metas para atingi-las, sob pena de serem demitidas ou discriminadas, em caso de insucesso. Eram pessoas submetidas a uma alta exigência física, a uma alta demanda de concentração e atenção o tempo todo. Ocupavam os postos de trabalho destinados a mulheres, consideradas pelos departamentos de recursos humanos, pacientes, meticulosas, delicadas e resistentes à repetitividade de movimentos. A despeito desse senso comum, histórica e culturalmente construído, as mulheres adoeciam, com dores crônicas e incapacidades graves, sofrendo toda sorte de discriminações. Mais uma vez vários estudos demonstraram que o trabalho era determinante na produção do desgaste físico e psíquico imposto a elas e não por suas características “femininas”.

Descobriu-se, sem dúvida, depois, que nas atividades em que os homens são exigidos de forma semelhante, eles também adoecem da mesma forma, como sabemos hoje, nos frigoríficos, nas montadoras, nos bancos, em atividades manuais repetitivas, sem pausas e sem tempo de recuperação.

E há vários anos, a categoria bancária tem vivenciado os efeitos de um aprofundamento da ideologia e prática neoliberais que assolam o mundo e tornaram o Brasil um país do paraíso fiscal. Bancários são peças e agentes do ramo financeiro, que assume protagonismo do neolilberalismo, extremamente agressivo e predatório, adversário de um projeto de equidade e justiça social. A face mostrada por esse sistema aos bancários e bancárias é constituída por metas excessivas e impossíveis de serem atingidas, extremo enxugamento do contingente humano, com demissões, assédio organizacional como método de gestão, uso de recursos que visam à captura da subjetividade dos bancários, que têm sofrido desgaste extremo e adoecido física e psiquicamente. Trabalham cada vez mais, por jornadas longas de trabalho, sem que consigam se desligar do trabalho, com exigências que não conseguem cumprir, frequentemente não têm hora para comer, vivem o tempo todo com medo de adoecer, serem discriminados, perderem cargos, perderem comissionamento, serem demitidos. Os que trabalham em agências têm ainda medo de assaltos. Com isso, proliferam as gastrites, a síndrome do intestino irritável, as dores no corpo, o alcoolismo, as depressões, as ansiedades, as insônias, as dores no corpo e consequentemente as medicações de diversas ordens, incluindo as de tarja preta, fazem parte de suas vidas. Por outro lado, o medo de se afastarem faz com que trabalhem doentes, com cronificações e incapacidades crescentes.

Bancários e pandemia de COVID-19.

Para lembrar o trabalho bancário no contexto da pandemia1, cito um relatório do Banco Central, segundo o qual, em 2017, todas as cidades brasileiras tinham pelo menos um ponto de atendimento físico, que consistia basicamente em agências e correspondentes bancários, terminais eletrônicos e caixas eletrônicos.

Mesmo com essa presença física significativa, 66% das transações financeiras se davam por canais remotos, quais sejam, internet banking, call centers, aplicativos para celulares e PDA (personal digital assistente – assistente digital personalizado) e a tendência era de aumento da proporção do acesso por meio digital.

O atendimento presencial ainda era considerado importante principalmente para a população que vivia distante dos grandes centros urbanos e ainda usava muito o dinheiro em espécie, mas como perspectiva, se colocava a sua substituição pelos pagamentos instantâneos por cartão de débito.

Foi nesse processo que a pandemia chegou, e para enfrentá-la, a CONTRAF e os sindicatos firmaram acordos com o setor patronal e negociações referente ao trabalho presencial e remoto.

A OMS declarou a existência da pandemia em 11/03/2020 e em 16 de março de 2020, já havia uma decisão conjunta entre a Federação Nacional dos Bancos (FENABAN) e os trabalhadores, representados por sindicatos e pela Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro (CONTRAF-CUT), sobre a formação de comitê bipartite de crise. 2

3Para relembrar, em abril de 2020, um acordo nacional entre a FENABAN e o Comando Nacional dos Bancários incluiu:

– a redução do horário de atendimento ao público pelos bancos;

– agendamento do atendimento;

– distanciamento físico nas filas;

– rodízio dos bancários, alternando períodos de trabalho presencial e domiciliar;

– antecipação do pagamento do 13º salário pelo Itaú, integralmente, aos funcionários até final de abril;

– o compromisso de não demitir trabalhadores enquanto a pandemia durasse, firmado pelo Itaú e Santander;

– mais de 55 % foram para o trabalho remoto e o compromisso de que qualquer alteração seria previamente discutida, incluindo quaisquer itens das medidas provisórias 927 e 936.

No decorrer do tempo, os empregadores não mantiveram o acordo e, inaugurado pelo Santander em junho de 2020, teve início processo de desligamentos dos bancários, o que foi seguido pelo Itaú e Bradesco.

Houve muitos descumprimentos na ponta do sistema e os dirigentes sindicais apontam como um dos motivos desse descumprimento, a manutenção e em muitos casos, até o aumento das metas a serem cumpridas.

Também o distanciamento físico, em um trabalho dinâmico nem sempre pôde ser mantido. O grande volume de trabalho induzia os bancários a minimizarem os sintomas nos casos leves. Também para os gestores, o diagnóstico de COVID e o afastamento significavam menos gente para trabalhar e atingir as metas. Dessa forma, a tendência foi a de se priorizar o alcance das metas.

De fato, pesquisa denominada “COVID-19 como doença relacionada ao trabalho”4, desenvolvida por pesquisadores de diversas instituições, constatou que neste aspecto, de 1.388 bancários que responderam ao formulário entre outubro de 2020 e março de 2021, mais de 50% referiram má ventilação e contato próximo a outras pessoas. 74,2% haviam trabalhado com pessoas infectadas por COVID e 45% responderam que todas as pessoas infectadas haviam sido afastadas, mas, quase 51% disseram que nem todas tinha sido afastadas!

Os bancos funcionam em ambientes fechados, sem renovação do ar e desde o início pautaram e acabaram conseguindo o fornecimento de máscaras para os bancários. O mesmo aconteceu com álcool gel, com os protetores faciais e com as barreiras acrílicas.

Os dirigentes sindicais descrevem o processo de fiscalização que fizeram como muito árduo, pois tinham que fazer cumprir o acordado em nível nacional, em um período em que era preciso tomar todos os cuidados para não se infectar e para não infectar familiares e colegas.

Mauro Sales, secretário de saúde da CONTRAF, destaca que essa fiscalização só foi possível porque a rede de sindicatos funcionou e se lembra de muitos companheiros que adoeceram enquanto atuavam na proteção dos colegas, em especial o presidente do sindicato dos bancários de Rondônia, muito ativo no empenho de proteger sua categoria e morreu por COVID-19 em abril de 2021. Mauro relatou que o movimento sindical parava as agências nas quais havia surtos, para que os contatantes pudessem permanecer em quarentena e que, em muitas delas, de fato, não havia trabalhadores suficientes para manter a atividade presencial por causa dos surtos e várias agências tiveram que permanecer fechadas por vários dias.

Em vários municípios obtiveram resposta positiva e ativa da Vigilância Sanitária do SUS que interferia nos locais de trabalho. E nesta questão também a influência política se fez sentir de forma contundente: enquanto alguns municípios eram lenientes com as empresas, houve prefeitos que se reuniram com as empresas e suas federações, no caso a FENABAN, para convergir em uma atuação conjunta com o objetivo de conter a pandemia nas cidades.

Os bancários conseguiram fazer acordo de testagem custeada pelos bancos, dos sintomáticos e dos contatantes, assim como a implementação da telemedicina, que também foi uma medida considerada importante para os bancários. Depararam-se com bancários negacionistas, embora fossem uma minoria.

Enfrentaram dilemas, como aquele em que houve em fevereiro de 2021, quando havia escassez de vacinas e se levantou a possibilidade do setor privado comprar vacinas, o que daria eventualmente margem ao favorecimento de pessoas com maior poder aquisitivo e pertencente ao mercado formal, a despeito de um programa de populações priorizadas pelo Ministério da Saúde. Vale destacar aqui duas questões importantes: a primeira, que a compra de vacinas pelo setor privado ocorre corriqueiramente, mas no contexto de escassez de vacinas, seria mais um passo no aprofundamento da desigualdade social do país e o SUS, que conta com toda a estrutura para vacinar 10 milhões de pessoas por dia não necessita do setor privado para tal, ao contrário de países como os Estados Unidos, em que toda a logística é privada na falta de estrutura pública. E a segunda, foi a compreensão que o movimento sindical teve do contexto da pandemia, colocando os interesses coletivos acima dos interesses corporativos e também sabendo que não seria a vacinação de cada indivíduo que garantiria a contenção da doença, e sim a imunização coletiva.

No dia 6 de julho de 2021, o Ministro da Saúde anunciou priorização de duas categorias profissionais como prioritárias na vacinação5: os bancários e os trabalhadores de Correios, anúncio que suscitou polêmica entre os epidemiologistas. Como era uma recomendação, alguns estados priorizaram essas categorias mas outros não.

A pandemia testou a capacidade de sermos capazes de exercitar o sentimento de proteção coletiva conjugada com a defesa específica de categorias de trabalhadores e trabalhadoras que se expuseram de forma particular ao risco. Isso aconteceu com todos que tiveram que trabalhar presencialmente e com quem conviveu com quem trabalhou presencialmente. Inúmeros são os casos de pessoas que não saíam de casa, mas tiveram COVID transmitida por familiares que trabalhavam presencialmente.

Muitos atualmente estão com COVID longa, com dificuldades e restrições para trabalhar e daí a importância de pesquisas, das quais destaco a pesquisa liderada pelo nosso Ministério da Saúde, em parceria com a Universidade Federal de Pelotas, Epicovid 2.06. Independentemente de pesquisas, acredito que o movimento sindical deveria encontrar formas de apoiar as inúmeras vítimas da COVID, lutando pelo reconhecimento da COVID como doença relacionada ao trabalho presencial.

Segundo dados do INSS, referentes portanto a trabalhadores formais, historicamente, 40- 43% das doenças relacionadas ao trabalho, para as quais foram emitidas CAT, acometem mulheres. Em 2020 houve um salto para 66,41%.7

No ano de 2020, houve um salto do registro das mulheres com doenças ocupacionais com CAT para 66,41%, como vemos no gráfico. Paralelamente temos a informação do INSS de que nesse mesmo ano, houve registro de 20.000 casos de COVID foram relacionados ao trabalho, o que nos faz imaginar que a preponderância de COVID relacionada ao trabalho registrada foi entre mulheres.

Os dados disponíveis não nos permitem afirmar com certeza, mas podemos inferir que o pico que vemos em 2020 são os 20.000 casos de COVID ocupacional.

Desses casos, quantos foram a óbito? Quantos órfãos da COVID existem no Brasil? Quantos homens e mulheres estão tendo dificuldades para trabalhar por estarem com sintomas de COVID-longa? São perguntas básicas que o Estado, com seus vários ministérios integrados, têm que analisar para pensar em necessidades presentes e futuras.

Pistas para combater o adoecimento dos bancários

Movimento sindical

Gostaria de lançar alguns pontos para diálogo.

Se compreendermos como se dá a captura da subjetividade dos trabalhadores pelo capital conseguiremos pelo menos traçar um caminho para poder disputar a cabeça dos bancários, que sáo pessoas com todas as aspirações e sonhos de consumo de classe média, que não veem como seu o movimento pela Saúde para Todos, ou pela Educação para Todos, ou pela Reforma Agrária, ou pela diminuição da desigualdade social, que são pautas progressistas. Ao contrário, têm como aspirações imediatas conseguir ampliação de seus planos de saúde, planos estes que dificilmente reconhecem as doenças dos bancários como relacionados ao trabalho, pois seu compromisso é com os bancos. Veem como pauta conseguir auxílio para pagar escolas privadas, e enveredar pelo pensamento de que as pessoas que se esforçam são recompensadas. E sabem que os que não correspondem ao que se espera são demitidos. Então, correm atrás de todas as cenouras colocadas pelos bancos.

Especificamente, não conseguem identificar que, enquanto estiverem sob a égide deste sistema econômico rentista continuarão a ser peças cada vez mais exploradas e facilmente repostas. Não conseguem enxergar a possibildade de construir um caminho para sua libertação da superexploração, por exemplo, com a ampliação de entidades de facilitação de créditos a pequenos e médios empreendedores. E sobretudo no fundo acham que somente os gestores do setor financeiro sabem fazer os bancos rodarem, dar lucros, sem perceberem que os bancos têm enormes benefícios do Estado (taxa de juros alta que prejudica a grande maioria das pessoas; esforço dos governos em pagar os juros da dívida interna às custas do encurtamento dos investimentos sociais, por exemplo).

Então, a pergunta que faço é: mesmo que o movimento sindical continue a colocar na pauta reivindicações que sejam aspirações imediatas da categoria, não haveria como construir um caminho que tenha como objetivo ampliar a dimensão do bancário como cidadão?

Chamo de aspirações imediatas o PLR, auxílio-babá, auxílio-creche, auxílio-funeral, auxílio-transporte, planos de saúde, antecipação de auxílios-doença, ampliação de licença-paternidade, etc – e eu quero destacar que todas essas reivindicações são justas, mas não questionam o grande sistema no qual vivem e trabalham.

Mas se queremos abraçar e conquistar o trabalho digno, devemos fazer mais que isso.

O Menos Metas Mais Saúde, em minha opinião, é questionador do sistema. Questiona um dos corações do sistema financeiro.

O outro coração do sistema a ser questionado é a forma de gestão autoritária, que conta com o isolamento e a fragmentação do tecido social dos bancários. Parece-me que o sistema financeiro, como é organizado, não necessita de articulações entre as pessoas, pois os recursos tecnológicos fazem isso para que tudo funcione. E a campanha contra o assédio moral pode ser extremamente educativa e ajudar a concretizar um sentimento de coletivo, se conseguir fazer as pessoas compreenderem que o assédio moral existe não fruto de conflitos ou pessoas mais conflituosas. Não! O assédio moral é generalizado no sistema financeiro porque ele é decorrente de um projeto que conta com a fragmentação das relações sociais. Pessoas que vivem e se comunicam a maior parte virtualmente. Trata-se de um assédio organizacional.

E o outro coração, este mais amplo, tem relação do bancário com o mundo. Com qual mundo podemos sonhar?

E aí, o questionamento passa pelo papel que o sistema financeiro desempenha no mundo e no Brasil. Esse papel desempenhado pelo sistema financeiro, como ele é, e pelo rentismo, está no fulcro do sistema econômico que impõe condições de vida precárias para o povo. Não é o que nos mostram os economistas sociais? Os bancos estão por trás dos planos e seguros de saúde, enfraquecendo e precarizando o SUS; estão por trás das Previdências Privadas, enfraquecendo e precarizando a Previdência Pública; os bancos estão por trás da Educação, com a proliferação de péssimas escolas e enfraquecendo e precarizando o ensino público, além das privatizações da Petrobrás, Correios, sistemas de abastecimento de água, etc. Enfraquecendo e precarizando não só objetivamente, mas também em nossos corações e mentes, quando vamos incorporando aos poucos que aquilo que é público é ruim e o que é privado funciona bem. Isso não estaria na raiz da história que temos construído e que resultou na pouca resistência que conseguimos impor à Reforma Trabalhista de 2017 e à Reforma Previdenciária de 2019?

A luta pela saúde dos bancários, como parte do povo, tem uma íntima relação com mudanças nesse sistema econômico hegemonizado pelo setor financeiro. Mas iso quer dizer que os bancários são prescindíveis e não têm função social? Ora, neste momento bancário é uma peça deste sistema financeiro, que multiplica o capital em um cenário de juros altos e paraíso fiscal brasileiro. Mas o bancário poderá ser uma peça social importante em outro sistema, no qual toda a tecnologia da qual dispomos possa ser usada para a criação e fortalecimento de sistemas robustos de grandes cooperativas de crédito, de instituições de fomento de empreendimentos sociais e empreendimentos individuais.

Assim, lutar por um trabalho digno é lutar por um mercado de trabalho que não nos corrompa, não nos violente, não nos adoeça e ao mesmo tempo produza coisas das quais a sociedade precisa.

A mesma coisa se aplica a outras categorias.

Um trabalhador pode ser explorado pelo agronegócio, ser escravizado ou muito mal pago e nesse papel é agente do enriquecimento de poucos, mas pode alternativamente plantar frutas, legumes e hortaliças orgânicas, como faz o MST, que é o maior produtor de arroz orgânico. Isso é possível se houver financiamento e crédito dentro de um sistema de segurança alimentar e nutricional, isto é, produzir para o nosso povo consumir alimentos 3 vezes por dia, como é o bordão do presidente Lula, mas também consumir alimentos saudáveis, que diminuirão o número de doenças crônicas, em particular doenças cardiovasculares e câncer.

A mesma coisa acontece com trabalhadores da saúde. Trabalhar na saúde é digno? Traz satisfação? Depende. Em um sistema de saúde no qual o sofrimento das pessoas fica subordinado aos lucros, o trabalho humano dos médicos, enfermeiros e demais trabalhadores da saúde também é subordinado aos lucros e isso quer dizer que vai se fazer aquilo que vale a pena para a sustentabilidade do sistema e não aquilo do qual os usuários necessitam. Por isso, a defesa do SUS como ele foi concebido tem uma íntima relação não só com a cidadania, mas também com um mercado de trabalho digno para os trabalhadores da saúde para que suas ações possam ser voltadas de verdade à produção de saúde.

Quanto a políticas públicas em defesa da saúde do trabalhador

Se a origem dos acidentes e doenças está no modo de produção e no privilégio do setor rentista, não seria o momento de pararmos como nação de enxugar o gelo?

O ciclo de vida laboral do bancários hoje é a organização do trabalho de trabalho individualizado, cada qual voltado para atingir suas metas e a gestão do trabalho voltada para pressionar as pessoas, sem que se leve em conta as dimensões humanas dos trabalhadores. Na ausência de democracia nas empresas, há um receio dos bancários em buscar ajuda e se afastarem, com medo de discriminação e demissão, o que aumenta o presenteísmo e anula a possibilidade de prevenir incapacidades, levando à cronificação e a incapacidades graves, exclusão do mercado de trabalho formal.

As investigações de acidentes de trabalho mostram que esses acidentes e muitas doenças decorrentes do trabalho são preveníveis se houver mudanças no modo de trabalhar.

A nossa Constituição Federal é rica nessa abordagem.

Novamente o art. 196 diz que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Portanto como disse, se quisermos mexer de verdade nos determinantes da saúde e do adoecimento, neste momento em que após um tenebroso inverno vislumbramos o sol, é insuficiente uma tentativa de repetição do passado, de buscar atuação interministerial somente entre Trabalho, Previdência Social e Saúde. Essas são as pastas que cuidam dos danos já ocorridos. Temos que, além de reforçar o caráter de promoção e da vigilância à saúde do SUS e de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego, trabalhar intersetorialmente para que haja mudanças no sistema econômico para que se avance no combate à precarização do trabalho, rompendo com o ciclo tradicional do desgaste dos trabalhadores e das trabalhadoras, e das famílias: é preciso que haja envolvimento das pastas dos Direitos Humanos, da Igualdade Racial, das Mulheres, do Meio Ambiente, da Assistência Social, da Educação, pois todas as populações sob seus cuidados são trabalhadores e também da Economia e Planejamento, da Agricultura, das Cidades, da Ciência e Tecnologia, etc, cujas decisões têm repercussão direta nos determinantes dos acidentes e doenças relacionadas ao trabalho.

Para combater a fome, os presidentes Lula e Dilma criaram o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), que visava fazer todos comerem mais e melhor. O SISAN não tinha o objetivo de matar apenas fome fisiológica. Propunha-se a matar a fome de cultura, de política, de emancipação. É preciso que o nosso mantra seja Saúde do Trabalhador é direito humano, além de constitucional. É preciso criar o Sistema Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (SINASTT) no país, com o envolvimento de todos e todas que trabalham, o que abrange todas as pessoas adultas. Essa proposta foi entregue ao então candidato Lula e vem sendo apoiada por várias lideranças dos movimentos, das universidades, por parlamentares. A defesa da Saúde do Trabalhador deve ser objeto de uma Política Nacional Intersetorial ampla, e não de um, dois ou três ministérios, a semelhança do SISAN que tem mais ou menos 20 ministérios envolvidos.

Para que ganhe concretude, o SINASTT necessita de um SUS robusto, soberano, que incorpore a dimensão trabalho em suas ações, aumentando sua capacidade de vigilância e de diagnóstico de doenças relacionadas ao trabalho, até o momento insuficiente, com pouco impacto na vida real.

É preciso então, que aproveitemos este momento alvissareiro para avançarmos na direção a uma política de Estado e isso tem que ter concretude no mundo real. Hoje temos menos casos de doenças relacionadas ao trabalho registradas no SUS do que no INSS, cujos dados são sabidamente subnotificados. INSS, cuja estrutura e organização do trabalho continuam induzindo o ocultamento os acidentados e adoecidos pelo trabalho. Hoje mesmo, nos locais onde as filas virtuais são maiores do que 30 dias ao trabalhador é oferecida a perícia documental que, se propõe a ser mais rápida, mas exclui os acidentes e doenças relacionadas ao trabalho. Representa na prática um boicote ao nexo técnico epidemiológico (NTEp) e é mais um mecanismo de ocultament0o dos agravos relacionados ao trabalho.

O momento é agora, quando temos pessoas experientes e progressistas em cargos importantes do governo federal, em um processo de reconstrução do país. Não façamos mais do mesmo.

Temos uma dívida histórica com os trabalhadores e trabalhadoras deste país e como disse o nosso Ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, os trabalhadores e trabalhadoras importam!

1 Maeno, M., Damarindo, C. Trabalho remoto bancário na pandemia da Covid-19. In: Pina, J.A., Jackson Filho. J.M., Souza, K. R., Takahashi, M.A.C. Saber Operário, construção de conhecimento e a luta dos trabalhadores pela saúde. São Paulo: Hucitec Editora, 2021.
2 https://www.cut.org.br/noticias/campanha-dos-bancarios-em-2020-ano-de-pandemia-foi-historica-b4cf
3 https://www.redebrasilatual.com.br/blogs/blog-na-rede/uma-historica-campanha-dos-bancarios-em-ano-de-pandemia/
4 Projeto de pesquisa Covid-19 como doença relacionada ao trabalho. Resultados preliminares. https://www.institutowalterleser.org/boletim
5 https://www.gov.br/pt-br/noticias/saude-e-vigilancia-sanitaria/2021/07/servidores-dos-correios-e-bancarios-entram-no-grupo-prioritario-de-vacinacao-contra-a-covid-19
6 https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/e/epicovid-19
7 Dados analisados pelo Serviço de Epidemiologia e Estatística da Fundacentro.

FONTE: SINDBANCÁRIOS

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